Não bastasse o vírus que
grassa em todos os cantos do planeta e acumula nefastas consequências, eis que
nos deparamos, novamente, com a chaga exposta da intolerável e inaceitável
violência racista, na cena recentemente projetada a todo o mundo. Refiro-me ao
episódio de Derek Chauvin contra George Floyd. Nos Estados Unidos, o policial
rendeu, covardemente, o ex-segurança de um restaurante e, com sua ação,
causou-lhe a morte. Agravante: eles se conheciam há vários anos; trabalharam
juntos como seguranças num estabelecimento comercial. Chauvin, branco; Floyd,
negro.
Floyd estava empregado, até a
pandemia se instalar e causar seu desemprego. Em decorrência do isolamento
social, o restaurante em que trabalhava não teve mais como manter os
funcionários. No dia de sua fatídica morte, ele havia sido detido, por tentar,
supostamente, pagar as compras que fizera numa mercearia em Minneapolis, com
uma nota falsificada de vinte dólares.
Diante desse fato, as reações
ecoaram, imediatamente, por todo o planeta, como rastilho de pólvora.
Manifestações e discursos se levantaram, mãos dadas, corações unidos. No
Brasil, cursos preparatórios sortearam bolsas para pessoas negras. Manifestos
foram publicados contra o que acontecia naquele país, palco dessa tragédia,
onde, um dia, o pastor Martin Luther King discursou para uma multidão: “Eu
tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não
pela cor de sua pele”. A frase ainda ecoa como um grito clamando por se
realizar. Os EUA, a maior e mais antiga democracia do mundo, carrega essa chaga
em seu âmago. E é uma dor social e humana.
Sempre achei o racismo odioso.
Na condição de reitor da Universidade Federal do Maranhão, tenho a alegria de
ser um dos incentivadores da criação do curso de graduação “Licenciatura
Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros”, o primeiro a ser
criado no país. Também fui o coordenador de um grande projeto que acompanhou as
condições de saúde dos quilombolas em Alcântara. Conheci pessoas fantásticas e
histórias de afirmação e superação de um passado marcado pela opressão,
preconceito e exclusão de toda sorte.
É da nigeriana
ChimamandaNgoziAdichie, uma das mais conhecidas intelectuais da atualidade, a
triste constatação: “Racismo nunca deveria ter acontecido”. Mas, infelizmente,
aconteceu e ainda acontece, em suas mais diversas e disfarçadas formas, e é um
problema que pede contínua vigilância. A razão dessa permanência atende a uma
condição social e psíquica do homem: um sentimento de tribo que inferioriza,
anula e mata o outro, sobre quem, por algum tipo de razão racista, seja
derramado ódio e perversidade. Racismo, eugenia, ideias supremacistas são como
uma doença incurável que jamais se afasta do doente e sempre está à espreita
para recidivar. A cura é suposta, pontual e momentânea, em situações
particulares. A metástase aparecerá em outro lugar do corpo da humanidade.
Os grandes catalizadores são
as carências, as vergonhas não elaboradas e superadas que pedem vinganças; as
crises econômicas; os cataclismas, que fazem emergir o pior do homem e as
colheitas históricas que alimentam os impulsos violentos contra aqueles que são
eleitos como bodes expiatórios para o alívio das sombras da alma de certos
grupos. Seus efeitos vão se mascarando entre a covardia e o olhar distorcido da
cantilena infernal de que são superiores. É esta a natureza básica do racista.
O pano de fundo dessa história
conta, também, com o coronavírus. Diante de um fato bárbaro como esse e de
outros a que temos assistido, o vírus está lá, à espreita, como uma espécie de
gatilho que dispara o contexto propício às cenas como essa de Derek Chauvin
contra George Floyd, mais perigosas do que a Covid-19. Infelizmente, deixo
impressões preocupantes sobre um trágico episódio de uma guerra cotidiana, entre
cujos personagens destaco o vírus, o próprio homem, o racismo e outros
inimigos.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da
Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário